28 de outubro de 2015

"Violência contra a Mulher"

Se alguém ainda tinha dúvidas de que o Brasil e um país machista, as reações nas redes sociais e no Parlamento ante a escolha do tema "Violência contra a mulher" para a redação do Enem 2015 as dirimiram.
Tão logo a escolha do tema se tornou pública, figuras tragicômicas do conservadorismo brasileiro, como Bolsonaro e Feliciano acusaram o exame de “doutrinação” e de “marxismo do PT”, voltando suas baterias, ainda, a uma questão baseada no clássico feminista O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Para além da contradição irônica de um militar e um pastor reclamarem de catequização ideológica, trata-se de uma tripla bobagem.

Confusão deliberada
Primeiro, porque a violência contra a mulher é um tema que não se enquadra na divisão político-ideológica convencional entre direita e esquerda, pertencendo ao âmbito dos Direitos Humanos - que, como tais, ao menos na letra da lei, transcendem partidarismos.
Segundo, porque o PT nunca foi marxista, o que dizer após sua conversão a um modelo capitalista de desenvolvimento baseado no consumismo.
Terceiro, porque uma das mais recorrentes críticas a Marx é justamente de negligência para com as questões de gênero.

Analfabetismo político
Mas tal reação teve um aspecto pedagógico: a repercussão de tais criticas nas redes sociais, barulhenta e volumosa, forneceu uma amostra do quanto se encontra disseminado, sobretudo entre jovens, um conservadorismo preconceituoso e ignorante (embora se acredite ilustrado), neles instilado por velhas figuras paternais travestidas de intelectuais e ideologos.
Presos a uma visão política binária e excludente, com baixíssima formação cultural e política, são aliciados para um autoritarismo que “opera pelo discurso e pela prática sempre bem engrenadas que se organizam ao modo de uma grande falácia, ao modo de um imperativo de alto impacto performativo: o outro não existe e, se existe, deve ser eliminado”, como descreve a filósofa Márcia Tiburi em artigo na revista Cult. Para ela, esse neoconservadorismo, que se quer uma elite intelectual e se crê aideológico enquanto critica o que entende por ideologia (esquerdista) alheia, caracteriza-se por “autoafirmação de ignorância, assinatura de estupidez”.

Fahrenheit 451
O jornalista Mário Magalhães foi didático a tal respeito, ao apontar, em seu blog, que “O problema maior são as veleidades de censor, a proposta, escancarada ou envergonhada, de eliminar da história Simone de Beauvoir, seu pensamento e suas ações”.
Seja como for, em termos polítcos é temeroso pensar o que esses jovens eleitores virão a fazer, nos próximos anos, com os seus votos.

Orgulho sem razão
O petismo, por sua vez, no estado extremo de carência em que se encontra, aproveitou o acerto na escolha do tema da redação como evidência, a um tempo, de seu esquerdismo e de que administra bem a Educação. Trata-se de uma dupla falácia, pois área educacional é a que mais sofre com o ajuste fiscal de inspiração neoliberal, com cortes na casa das dezenas de bilhões de reais.
Pior: no que diz respeito ao próprio tema da violência doméstica, embora o partido tenha o grande mérito de ter participado da elaboração e ajudado a aprovar no Congresso a “Lei Maria da Penha”, sancionada pelo presidente Lula, o governo Dilma, ao vetar a lei que determinava a igualdade de salários entre homens e mulheres, colaborou de maneira decisiva para perpetuar a assimetria econômica entre os sexos - que, por sua vez, está no cerne das relações de dependência financeira que dificultam tanto a denúncia da violência quanto a obtenção de autonomia por parte de mulheres agredidas, muitas das quais acabam presas a uma relação abusiva.

Feminicidio e violência
Nunca é demais apontar que a violência contra a mulher é uma questão social urgente. Segundo dados oficiais, quase 50 mil brasileiras foram assassinadas entre 2001 e 2011, a maioria entre 15 e 24 anos. Foram feitas mais de 50.000 denúncias em 2014, sendo que 77% das mulheres que relatam viver em situação de violência são agredidas ao menos uma vez por semana, 48% delas em sua própria casa. Sendo que se teme que esses números sejam apenas a face visível de uma violência que muitas vezes sequer é registrada.
Portanto, carimbar tal tema de propaganda esquerdista revela um misto de ignorância e má-fé, pois faz todo o sentido (cívico, educacional, preventivo) instigar jovens vestibulandos a sobre ele refletirem. A escolha dos examinadores foi mais do que acertada.

Jogo de aparências
Mas, levando em consideração o todo da prova, isso não anula algumas das críticas que são feitas ao Enem (não obstante o avanço que este representa em relação ao vestibular convencional). Dentre elas destacam-se o desprezo pelas diferentes realidades educacionais regionais, a não-explicitação dos propósitos e da competência de área de cada questão, e um modelo de prova que, se inova na escolha das questões, tratando temas sociais atuais, não deixa de repetir uma fórmula esquemática de exame que favorece as escolas cujo planejamento de aulas se dá com vistas ao exame (à maneira dos antigos curtinhos), prejudicando aquelas que cobrem o currículo sem direcioná-lo para tal.

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Tais vícios têm tido como distorção mais palpável a hegemonia nacional, nos cursos mais disputados, de estudantes advindos das escolas de elite do Sudeste, os quais, além da ampla supremacia em sua própria região, têm ocupado muitas das vagas no restante do país, notadamente no Nordeste. Para um exame que foi anunciado como um substituto democratizante e socialmente includente ao velho modelo de seleção, trata-se de um problema gravíssimo.

Sem cura
E, sobretudo, o de ser publicizado como uma falsa panaceia includente, enquanto na verdade nada altera em termos da qualidade do ensino oferecido. Como resume com propriedade Alcides Villaça:
“Em vez de uma educação pública de bom nível, elaborar a cada ano uma cada vez melhor prova de avaliação do ensino deficitário. Um estranho termômetro, planejado para dissimular a febre”.

Mais de uma década de paliativos
Nesse sentido, o Enem repetiria o que se tornou um padrão nos 13 anos de petismo no poder: a opção por medidas de baixo ou nenhum custo, vendidas como panaceias, no lugar de ações planejadas e estruturadas de melhoria da Saúde e da Educação - como, respectivamente, o Mais Médicos, em vez de uma reestruturação da saúde pública no país; e a adoção de (bem-vindas) cotas, mas desacompanhadas de uma reforma educacional que estimulasse, em parceria com os estados, um salto qualitativo na área. Destarte, aliviam-se alguns problemas e corrigem-se algumas distorções, mas sem mexer na estrutura que os causa.

A questão do contraditório
Tampouco se pode negar que, apesar da louvável escolha do tema, a correção da redação trará armadilhas potenciais. Pois, por um lado, parecem consideráveis as chances de que vestibulandos machistas e que foram previamente orientados a fazer ponderações e atentar ao contraditório em suas redações venham com argumentações do tipo "a mulher tem de se preservar", que indiretamente a culpam pela violência sofrida, chancelando-a.
Se, como tem sido nos últimos anos, a correção da redação der prioridade a estrutura, correção gramatical e construção de sentido, em detrimento da coesão ideológica, aumentam as chances de que redações tais como as descritas no parágrafo anterior venham a obter notas altas – quiçá máximas.

Escândalos
Por outro lado, se a correção se ativer com o devido rigor aos preceitos éticos e só der notas altas a redações que condenem sem subterfúgios a violência contra a mulher, isso pode vir a ser interpretado como um endosso à crítica (que não veio só do conservadorismo) de que, apesar de sua inegável importância, o tema, tal como proposto, não comporta o contraditório e impõe, na prática, uma – e apenas uma - posição ideológica ao vestibulando.
De um modo ou de outro, a tendência é que a questão da escolha do tema volte a produzir escândalos na mídia tão logo a correção e as notas das redações sejam divulgadas.

AUTOR: Maurício Caleiro.
Fonte:http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com.br/2015/10/o-escandalo-do-enem.html#sthash.Zm9r0S6u.dpuf

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