Às vezes assistimos à consolidação de um determinado comportamento que se foi generalizando sem que nos déssemos conta e, em dado momento, achamos estranho ele estar ali, estabelecido como se sempre tivesse estado.
Com o ficar foi mais ou menos assim. Hoje a constatação que se faz é que o ficar não só é um rito de passagem da infância para a adolescência. Definiu-se como uma prática absolutamente comum, que permeia todo o período da juventude, legitimada pelos jovens como uma forma de conhecimento mútuo.É curioso observar que essa prática passou também a ser adotada por outros grupos de solteiros: os de adultos, às vezes até não tão jovens, que antes se limitavam a assistir ao fenômeno.
A tentação é perguntar: afinal viramos todos adolescentes? Não nos aventuremos a tentar esclarecer essa questão em profundidade. Nem os jovens, precursores de tudo, classificam o seu próprio comportamento. É como se dissessem: é assim, e pronto. O fato é que tornam-se cada vez mais raros os namoros que acontecem sem serem precedidos de um período em que o casal se encontra e fica algumas vezes.
Em muitas ocasiões, a idéia de um compromisso futuro está definitivamente descartada no ato de ficar. É quando não se está a procura de namoro e sim de puro entretenimento. É a experiência sensorial compartilhada e interessante para ambos os sexos, sem nenhuma questão moral envolvida. Numa cultura onde o transitório e o descartável cada vez têm mais lugar, o ficar parece representar o máximo possível de uma relação provisória. Nesse caso, os envolvidos, em princípio, estão interessados apenas nos bônus da experiência sensorial. Os ônus seriam os do compromisso.
E quais os ônus, aparentemente tão elevados, que adviriam do compromisso? É mais fácil saber do que falamos, uma espécie de horror ao compromisso, se pensarmos na sociedade de consumo em que vivemos hoje em dia e nas regras que ela gera . A substituição de tudo por algo melhor é a tônica de nossa cultura na atualidade. Assim, pode-se ficar com alguém mas deve-se estar, ao mesmo tempo, sempre aberto à possibilidade de aparecer alguém melhor . É o consumo aplicado às relações pessoais.
Outra possibilidade de entendimento é que parece existir a crença de que, nas relações com esse caráter provisório, se está protegido do sofrimento trazido pela perda eventual da pessoa amada. Se não existe o vínculo afetivo com o outro, não se sente dor quando ele se vai. Seria supostamente um modelo de relacionamento interpessoal de menor risco, digamos assim.
O que não se considera é que são as perdas e as suas elaborações que nos fazem crescer como indivíduos, e nos tornam mais aptos para o amor em geral. As relações descartáveis, ao contrário, se muito repetidas, podem se transformar num padrão internalizado, que assim passa a moldar todos os relacionamentos. Isso certamente fará com que haja um empobrecimento afetivo nas relações dessas pessoas, impedido-as de terem experiências emocionais mais plenas com os outros e com a própria vida.
De qualquer forma, tudo o que está sendo dito não encerra a questão, ao contrário, é apenas um convite à reflexão sobre um fenômeno contemporâneo, presente em nossa cultura e em nossas vidas, de uma ou de outra forma.Fonte: Simone Sotto Mayor. Médica Psiquiatra e PsicanalistaFonte: Rev. Rio Total
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