Na
minha inarredável crença no Carpe Diem horaciano e na sabedoria que
reside na atitude de valorizarmos o tempo presente, evitando saudosismos
desnecessários ou devaneios acerca de um futuro insondável, habituei-me
a não me prender a recordações, a não cultivar saudades que me
deixariam com aquele incômodo sentimento de perda a escurecer-me por
dentro. Mas hoje, tive uma recaída e fiz uma longa viagem de volta aos
meus outroras! Peço desculpas a quem não aprecia textos longos e talvez
pobre de interesse, pois que fala de uma vidinha um tanto sem brilho.
Até
algum tempo atrás, quando observava a vida das moças nos dias atuais, a
liberdade ilimitada que têm, a forma como se comportam, como pensam e
falam, vinham-me à mente algumas lembranças da época da minha juventude.
A comparação era inevitável, pois era tudo tão espantosamente
diferente! Mas não sei ao certo se era melhor ou pior. Na época,
achávamos natural, não tínhamos noção de que poderia ser diferente.
Hoje,
já tenho o distanciamento necessário para estabelecer comparações e
perceber o quanto foi reprimida a vidinha que nos permitiu viver a
sociedade severa dos anos cinqüenta. Tanto o meio social quanto os
nossos pais eram repressores e vigilantes, cerceavam a nossa liberdade e
nos impunham uma série de limites que não ousávamos transgredir.
Namorava-se na calçada de frente a casa ou na varanda, sair sozinha com o
namorado, nem pensar! Beijar na boca... só se fosse beijo roubado,
escapando aos vigilantes pares de olhos que não nos perdiam de vista.
Casávamos virgens, depois de um longo namoro e noivado (ainda era
costume o rapaz pedir a mão da moça em casamento ao seu pai).
Mas,
haviam coisas maravilhosas e inesquecíveis, como as serenatas que me
acordavam na madrugada com românticas canções e acordes de violão. Não
me casei com o dono da voz. Não que nos faltassem amor e vontade! Mas
esta já é outra história de interferência familiar bem típica da
época... melhor esquecer!
Quando
explodiu o Rock in roll e Elvis Presley tornou-se moda, mania e paixão
veio junto a interdição: moça decente não podia dançar o frenético e
obsceno ritmo norte-americano. Seria um escândalo! A garota ficaria
“falada”! Quem iria querê-la para esposa?! Foi um ai, Jesus! Fãs
incondicionais de Elvis, eu e meu irmão não resistimos à tentação e
demos uma fugidinha até um clubinho que havia perto da nossa casa, para
balançar os esqueletos naquela consumição, com uma turma do colégio. Nem
gosto de lembrar o pandemônio que fez a minha mãe, quando retornamos.
Só comigo, é claro! Meu irmão “era homem”, podia tudo!
LEIA MAIS, clicando na frase abaixo.
LEIA MAIS, clicando na frase abaixo.
Éramos
privadas de muitas coisas que hoje são banalidades: não podíamos
ingerir bebidas alcoólicas, cigarro só depois dos 21 anos e biquíni era
traje de moça “falada”. Rapaz que tirasse a virgindade da namorada, era
obrigado a “salvar a honra” da moça, casando-se com ela, quisesse ou
não. Pois moça “não dava”, se “desse” levava o rótulo de “moça perdida”,
com a qual nenhum rapaz que se prezasse casaria. A mulher não tinha
liberdade, quando solteira obedecia aos pais, depois de casada apenas
mudava de dono e passava a ser tutelada pelo marido. Poucas trabalhavam
fora de casa e raras tinham permissão para saírem desacompanhadas (para
não caírem na boca do povo).
Mas,
nem tudo era negativo, tínhamos formas de diversão que nos
proporcionavam muita satisfação. Sem televisão para roubar os diálogos
familiares, havia mais proximidade entre as pessoas, havia o costume de
fazer visitas a amigos e familiares, oportunizando muito mais
convivência e aconchego com primos, tios e velhos amigos. Na rua onde eu
morava, os vizinhos eram nossos amigos e nas noites calorentas de Verão
juntavam-se todos para, sentados em cadeiras na calçada, apreciar o
luar e conversar, enquanto a criançada brincava de roda, de amarelinha,
de pular corda, em feliz alarido etc.
Nas
festas de São João e de São Pedro, enfeitávamos a rua com bandeirolas
coloridas, acendíamos fogueiras à frente das casas para assar milho,
batata doce e acender foguetões. Dançava-se quadrilha, xote e baião de
Luís Gonzaga, ao som dos discos de vinil rodando na vitrola posta na
varanda. O vestido de caipira feito de chitão estampado era
indispensável. Belos tempos! Havia romantismo nos namoros, muita paixão
pelo cinema e pelas rádio-novelas.
Ainda
me indago como foi que consegui adaptar-me às mudanças radicais
operadas nos usos e costumes, na linguagem e nos comportamentos,
especialmente das mulheres, a partir da década de 60 do século anterior.
A virada foi muito violenta, rápida e contínua. Mudou tudo! No início,
assustei-me. Senti medo de não saber como educar e orientar as minhas
filhas, pois o modelo que eu havia interiorizado estava demolido, os
valores da minha geração estavam virando piadas e eu ainda não
assimilara as novidades defendidas pelas feministas e postas em prática
por Leila Diniz, difundidas no cinema por Brigitte Bardot e Marilin
Monroe, espalhadas pelo mundo pelo irreverente movimento hippie.
O
surgimento da pílula anticoncepcional liberava, sexualmente, a mulher.
Eram muitas informações e mudanças que colidiam com os meus valores e
princípios, que desmentiam todas as certezas que me haviam incutido até
então e, o pior, coincidiam com um momento de crise existencial que
resultou em mudanças radicais em minha vida. Que roda viva!
Não
sei como o milagre da minha adaptação às mudanças aconteceu. Só sei
que, quando me dei conta, estava integrada nos novos tempos, sem me
escandalizar, sem rejeitar o que os outros faziam. Apenas dava-me o
direito de escolha do que realmente achava melhor para mim e de rejeitar
o que não me convinha. Por exemplo, nunca quis usar mini saia, sempre
detestei jeans (ainda abomino) e continuei rejeitando os palavrões, a
bebida alcoólica, o sexo fora de uma relação afetiva séria e outras
coisas que não tinham nada a ver com a minha personalidade e meu modo de
estar na vida.
Consegui
a façanha de ser uma mãe “moderna” para minhas filhas, vivendo a época
delas, mas que impunha limites tanto quanto não dispensava o diálogo
aberto e franco. Atravessei todo o período de mudanças, sem jamais
dizer, com ar de censura: “no meu tempo as coisas eram diferentes”, como
ouvi tantas vezes a minha mãe dizer, ao censurar-me por pequenas e
inocentes ousadias que eu arriscava. Às vezes, diante de algumas
mudanças que achava positivas, chegava a pensar cá com meus botões: “que
pena não ter sido assim no meu tempo”. Mas vi também cenas desastrosas
de mães que, com receio do choque entre gerações ou de parecerem
retrógradas, punham os carros adiante dos bois, causando um grande
estrago na vidinha das filhas e filhos ainda adolescentes.
Não
vou negar que, às vezes, sinto saudades de algumas coisas daqueles
tempos. Na verdade, sinto uma enorme saudade da vida sossegada, sem
drogas, sem tanta corrupção e impunidade, sem violência urbana e no meio
rural. Tenho uma imensa pena de ver os meus netos privados de viverem
uma infância como foi a da minha geração e, de certo modo, a dos seus
pais, com muitas brincadeiras a céu aberto, muito espaço para se
moverem, sem games e tudo o mais que buscam na telinha da TV e do
computador ou dentro dos shoppings, comportando-se como adultos em
miniatura, passando pela infância sem saberem o que significa ser
criança, pois se tornaram reféns da sociedade, da mesma sociedade que
libertou seus pais.
Nos
tempos da brilhantina, nós éramos felizes e não sabíamos, nos somos uma
geração que viveu o período de maiores transformações no
mundo...vivemos a história que hoje estudam nas escolas... Que vida!
4 comentários:
Amei seu texto.E não é grande nem um pouco,pelo contrário,com um assunto tão delicioso tornou-se até pequeno.Também vive essa época e tenho certeza,que foi uma das melhores.Bjsssssssssssss.
Estou sempre visitando o teu Blogger.Em tela , o último texto. apesar de tuas advertências contra o leitor se enfadar com 0 texto grande, comigo aconteceu certamente o contrário.
À mediada em que ia lendo, absorvendo suas palavras, um filme já bastante conhecido , ia se passando em minha mente e diante de meus olhos. Parece que tu escrevestes sobre o meu passado,exclusivamente. Ainda há coisa de uns 15 minutos, estava eu falando com minha filha justamente sobre minha infância e de como foi a minha educação familiar.
Sou filha única, hj com 72 anos de idade. Casei-me virgem aos 24 e vivo até hj com o mesmo homem/marido, há 47 e que com 82, há 30 sofre as sequelas de um AVC.Precisa 99,9% de cuidados especiais que são na ÍNTEGRA REALIZADOS POR MIM.
Sou de uma cidade do interior e tudo o que tu relatastes aqui fizeram parte de minha vida.Quando li seu texto, pensei: Eu era feliz e não sabia. Frase que costumo repetir sempre no meu dia a dia. E no fim deparo com a mesma frase dita por ti. Não é ótimo ?
Pode me achar um pouco estranha mas, na minha opinião a coisa começou a mudar muito desde quando OS JOVENS pássaram a chamar os mais velhos, pais , avós e principalmente professores de VOCÊ.
PARECE-ME QUE O DISTANCIAMENTO entre ambos que até então servia para medir o respeito caiu por terra.Professor a fumar dentro de sala de aula e até se sentar NA MESA ENQUANTO DAVA/DÁ aulas. Prof/aluno como casal de namorados.
Daí as drogas com seus imensuráveis tentáculos foram se alongando até alcançar os interiores mais longínquos deste país/mundo, desgraçando não só com as vidas dos usuários como também com as de rodos que os cercam.
Cadeiras nas calçadas! Serenatas! quantas vezes saia de minha cama e ia me juntar aos amigos seresteiros para cantar ( dizem que eu tinha uma belíssima voz kkkkk). Namorado? Só junto da mamãe. Apenas as Festas Juninas eram no meu colégio.( Estudei em colégio de Padres, Imagina o uniforme: saia azul marinho pregueada, comprimento meio da canela. Blusa branquíssima de mangas compridas e gola alta fechada com botão igual a de homem. Gravata azul marinho tb igual a de homem; meias brancas e sapatos pretos fechados. Pintura? nem um pó de arroz! Baton? Rouge? Neca. A Fiscal de alunos ficava de um lado da porta por onde passávamos, em fila indiana, com uma toalha e saboneteira na mão. Aquele que estivesse com um arzinho de beleza artificial...mandava direto lavar o rosto.
Havia 2 amigas levadas da breca, já na época chamadas de prafrentex, quando não queriam assistir às aulas metiam um batom vermelho sangue e provocavam a Fiscal dizendo que o batom era novo e que não iam tirá-lo. Então eram suspensas da aula.Andavam em pé , de saia godê, na sombrinha ( brinquedo de parque de diversões)
Eu, como tinha pavor dos castigos da mamãe, nunca me meti em confusões.
Parabéns! Teu texto está uma delícia ! Só quem viveu esta época pode avaliar o como tudo isto que dissestes é gratificante recordar.
Parabéns, mais uma vez!
Gostaria muito de conhecê-la, literariamente mais de perto.
Amarininha
Obrigada pela visita e pelas palavras carinhosas. Volte sempre.
ANÔNIMA,
Também gostei muito de ler o seu relato, suas palavras de apoio ao meu texto.
Na verdade, não sou saudosista. Mas no dia em que escrevi esse texto, estava tão chocada com as mazelas da juventude de hoje, com a forma como as crianças são desviadas da infância, que findei em rememorações do passado. Gostei de escrevê-lo, de reviver o passado, de sentir o quanto foi bom aquele tempo... Obrigada pela visita. Um abraço fraterno.
Postar um comentário